Se existe vida após a morte, para onde vai o suicida? Por que, dizem as
religiões em geral, não é permitido à alma suicida juntar-se às não suicidas?
Por que esse além-sectarismo? Se não há vida eterna, por que condenar o
suicida? Por que julgá-lo por seu ato inexplicável? Essas são algumas questões
que suscita a leitura do romance O céu
dos suicidas de Ricardo Lísias publicado pela Alfaguara.
O mistério indecifrável desse ato
aterrorizador perturba os vivos. Não é diferente com o personagem do romance,
Ricardo Lísias, que luta para compreender a solução extrema empreendida pelo
amigo: “quando tudo começou, minha primeira reação foi sentir ódio do André.
Tenho vergonha de dizer: mal ele tinha sido enterrado, eu o xingava, falando
sozinho na rua”. Sua incompreensão não está livre de algum remorso: “sentir
saudades significa, em alguma parcela, arrepender-se”. A agonia intensifica-se
“porque todo mundo diz que quem se mata não vai para o céu”.
André, historiador, interessado
na Ordem dos Templários, “era católico. Ele não ia à missa, e muito menos
obedecia aos rituais contemporâneos, mas cumpria suas obrigações religiosas por
meio de um código particular”. Mas explicações religiosas não satisfazem o
personagem Ricardo Lísias. Não existe propriamente a negação da existência de
Deus, num primeiro momento. Ele apenas não aceita suas ações, ou a falta delas:
“Os suicidas sofrem. Deus desgraçado”. Até que a ira toma conta de Ricardo e
ele se volta violentamente contra os ensinamentos das igrejas,
independentemente da confissão. Sobra para o pastor protestante: “Olha aqui,
seu filho da puta, não sei como vocês dessas religiões saem por aí fazendo
propaganda de Deus, você já viu Deus?, me responde, seu filho da puta: você já
viu Deus? Então vai tomar no cu. Vai todo mundo tomar no cu.” Sobra também para
o Papa Bento XVI: “E esse papa, esse papa aí não foi nazista, não? Todo mundo
sabe, seu filho da puta, todo mundo sabe que vocês são pedófilos”.
A solução reside possivelmente nas contradições:
“Nunca acreditei em paraíso, nessas coisas, mas agora descobri que, mesmo tendo
se matado, se enforcado, o André parou de sofrer e foi direto para o céu”. Se
não existe a vida eterna, não há razão para se lamentar a perda do paraíso. A
revolta só faz sentido para aquele que acredita na existência do céu e não se
conforma com a impossibilidade do suicida entrar nele. Assim, talvez a questão
fundamental não seria o suicida ir ou não ir para o céu, mas antes, se existe
ou não o tal céu.
O narrador Ricardo Lísias é um colecionador benjaminiano: “uma coleção
não é um mero acúmulo, mas a história que há por trás de cada um dos itens”.
Ele se lembra das coisas antes delas acontecerem. O tempo da narrativa não é
linear e o leitor deve estar atento às antecipações e aos retardamentos
intencionais.
O romance é uma homenagem ao amigo André: “uma coleção é como um amigo
[...] um presente a esse grande amigo. Aqui está, André”. E não apenas a ele,
mas a todos os suicidas, a todas as vidas que lamentavelmente se vão: “a gente
descobre o nosso tamanho só quando morre”. É a morte, afinal, que dá algum
sentido à existência.
por Flavio Quintale
Muito interessante :)
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