quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Para a sua coleção, Ricardo

     Se existe vida após a morte, para onde vai o suicida? Por que, dizem as religiões em geral, não é permitido à alma suicida juntar-se às não suicidas? Por que esse além-sectarismo? Se não há vida eterna, por que condenar o suicida? Por que julgá-lo por seu ato inexplicável? Essas são algumas questões que suscita a leitura do romance O céu dos suicidas de Ricardo Lísias publicado pela Alfaguara.
     O mistério indecifrável desse ato aterrorizador perturba os vivos. Não é diferente com o personagem do romance, Ricardo Lísias, que luta para compreender a solução extrema empreendida pelo amigo: “quando tudo começou, minha primeira reação foi sentir ódio do André. Tenho vergonha de dizer: mal ele tinha sido enterrado, eu o xingava, falando sozinho na rua”. Sua incompreensão não está livre de algum remorso: “sentir saudades significa, em alguma parcela, arrepender-se”. A agonia intensifica-se “porque todo mundo diz que quem se mata não vai para o céu”.
     André, historiador, interessado na Ordem dos Templários, “era católico. Ele não ia à missa, e muito menos obedecia aos rituais contemporâneos, mas cumpria suas obrigações religiosas por meio de um código particular”. Mas explicações religiosas não satisfazem o personagem Ricardo Lísias. Não existe propriamente a negação da existência de Deus, num primeiro momento. Ele apenas não aceita suas ações, ou a falta delas: “Os suicidas sofrem. Deus desgraçado”. Até que a ira toma conta de Ricardo e ele se volta violentamente contra os ensinamentos das igrejas, independentemente da confissão. Sobra para o pastor protestante: “Olha aqui, seu filho da puta, não sei como vocês dessas religiões saem por aí fazendo propaganda de Deus, você já viu Deus?, me responde, seu filho da puta: você já viu Deus? Então vai tomar no cu. Vai todo mundo tomar no cu.” Sobra também para o Papa Bento XVI: “E esse papa, esse papa aí não foi nazista, não? Todo mundo sabe, seu filho da puta, todo mundo sabe que vocês são pedófilos”.
    A solução reside possivelmente nas contradições: “Nunca acreditei em paraíso, nessas coisas, mas agora descobri que, mesmo tendo se matado, se enforcado, o André parou de sofrer e foi direto para o céu”. Se não existe a vida eterna, não há razão para se lamentar a perda do paraíso. A revolta só faz sentido para aquele que acredita na existência do céu e não se conforma com a impossibilidade do suicida entrar nele. Assim, talvez a questão fundamental não seria o suicida ir ou não ir para o céu, mas antes, se existe ou não o tal céu.
    O narrador Ricardo Lísias é um colecionador benjaminiano: “uma coleção não é um mero acúmulo, mas a história que há por trás de cada um dos itens”. Ele se lembra das coisas antes delas acontecerem. O tempo da narrativa não é linear e o leitor deve estar atento às antecipações e aos retardamentos intencionais.
    O romance é uma homenagem ao amigo André: “uma coleção é como um amigo [...] um presente a esse grande amigo. Aqui está, André”. E não apenas a ele, mas a todos os suicidas, a todas as vidas que lamentavelmente se vão: “a gente descobre o nosso tamanho só quando morre”. É a morte, afinal, que dá algum sentido à existência. 
 
por Flavio Quintale
 

Um comentário: