“Lembrei-me das palavras dos antigos cabalistas, alertando que a
diferença entre luz e trevas é ilusória, pois ambas são únicas em natureza, e não
há luz sem trevas, e não há trevas sem luz”. Essa citação intrigante colhida na
página 27 é, em certo sentido, o tema fundamental do consistente romance Uma leve simetria de Rafael Bán Jacobsen
publicado pela Não-Editora.
Mas o leitor não precisa ter lido Gershom Scholem, muito menos ser conhecedor
do Zohar ou do Bahir, para seguir essa narrativa envolvente onde tudo se refere
ao duplo, ao real e ao ilusório, ao ser e ao parecer. A dicotomia aparece na
personagem Daniel. Basta o leitor o seguir, atento a sua consciência
atormentada e as suas aflições, para compreender o quanto ele sofre com seus escrúpulos
e dilemas. As perturbações de um sujeito profundamente religioso ao descobrir desejos
homossexuais: “se olharmos friamente para a Lei, nada impede o gostar; contudo,
a realização é vedada”.
Utilizando-se da imagem dualista da mística judaica, Rafael apresenta um
tema extremamente atual, que atinge em cheio a sociedade brasileira. Em tempos
de discursos intransigentes e apoderação de grupos religiosos da mídia e da máquina
política nacional, o romance problematiza o drama do sujeito individual,
esquecido dos grandes debates públicos, na luta com seus demônios pessoais:
“Deve ser tão bom ter um Deus que se pode ver, pensei. O meu, contudo,
permanece invisível, invisível e grandioso como a guerra travada dentro de
mim”.
A obra está recheada de referências ao Pentateuco e diferentes versículos
do Salmo 119 separam os capítulos. Sem contar as inúmeras passagens de
ensinamentos da Kabbalah como: “no
vazio de infinitos grãos, incontáveis mônadas, fadadas ao nada, espelhando o
universo inteiro”. E, embora as alusões ao mundo judaico sejam constantes,
o romance não se fecha ao particular, pelo contrário, aborda uma problemática
ampla, vivida também por cristãos e mulçumanos.
Como um personagem de Kafka, o medo de um Deus rigoroso e vingador também
atribula os seus: “adiante, na escuridão, o Rei os observava”. E, ainda
que o romance não tenha nada de kafkiano, ele é absolutamente kafkiano. Fala de
uma coisa para muitos para falar de outra para poucos. Não são também O Processo e O Castelo monumentos da Kabbalah
em forma de romance? O leitor tire suas conclusões.
A
narrativa é bem construída e Rafael demonstra grande conhecimento de teologia e
filosofia, além de ter competente domínio da escrita, refletidas nas
construções e no vocabulário apurado que permeiam a obra. Curiosamente, para o
mundo em que vivemos, esse talvez seja o seu maior pecado.
por Flavio Quintale
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