Vire e mexe vem gente vender coisas para mim.
Recentemente uma moça tocou a campainha de casa e, pelo interfone, anunciou que
eu havia sido escolhido entre os moradores do bairro para ter um desconto de vinte
e cinco por cento nas contas de luz, gás e água. Estava pensando em tudo naquele instante,
menos nas contas de luz, gás e água. Já basta o sofrimento no dia do pagamento.
Foi bem no momento em que, saboreando um café forte, lia o jornal The Independent que anunciava, com
grande alarde, a proposição de Berlim em acolher cerca de 800 mil refugiados
sírios no país. Alguns eufóricos veem a medida como parte de um pagamento humanitário
que a Alemanha deve ao mundo. De fato, a medida é louvável. O mundo assiste o
desespero de famílias em fuga em busca da sobrevivência. Fotos chocantes
inundam nosso cotidiano. Dar-lhes um lar e perspectiva de futuro é um ato de
solidariedade invejável. Por outro lado, a Dinamarca faz anúncios na imprensa da
região dos conflitos desencorajando os refugiados a tentarem entrar em seu país.
Os dinamarqueses leem a história do Patinho
Feio de Andersen desde pequenos. Uma parte da população europeia teme o avanço
mulçumano ainda maior no continente que pode vir com os refugiados. Foram séculos
de luta pela liberdade religiosa. Revoluções e perseguições que custaram muitas
vidas. O proselitismo islâmico assusta muitos dos que se opõem a recebê-los. Os
partidos xenófobos ganham força. Michel Houellebecq não fez sucesso com seu Soumission por acaso. Esse é o cerne das
discussões na Europa, não é somente a questão econômica.
Mas
como ouvi, pelo interfone, a palavra “desconto”, senti um “tim” nos meus
ouvidos. Fiquei interessado em ouvir a
boa nova. Fui até a porta atendê-la em ritmo de chachachá. Ela pediu para entrar. Cordialmente, levei-a para se
sentar à mesa que temos no jardim. Lá, comemos em família nos dias quentes, nos
dias de festa e nos dias de churrasco. Ela se acomodou e começou a explicar que
eu receberia um desconto de 25% se trocasse de companhia. Para tanto, eu
deveria pagar uma multa para minha atual fornecedora. Ou seja, ela não me
disse, mas fazendo os cálculos, no final das contas, a mudança me custaria mais
caro. Educadamente, disse que não tinha interesse. Com certa irritação, ela
insistiu em me convencer. “O senhor não quer ter desconto?” Entendo. Ela
depende de persuadir as pessoas para ganhar uma comissão que, imagino, coitada,
deve ser bem irrisória. “Não. Não quero”. Surpresa, ela começava a perder a
esperança, até que argumentei que todas essas empresas eram geridas por
delinquentes, querendo sempre explorar o consumidor. Vendo meu descrédito no
sistema, desolada, ela concordou em ir embora.
Sem deixar de falar em faturas a
pagar e voltando a tratar do caso espinhoso, sou obrigado a fazer uma confissão:
suspeito de tanto amor. Estrangeiro que viveu tantos anos na Alemanha, como é o
meu caso, terá provavelmente a mesma desconfiança que eu. É preciso tomar
cuidado. Poderão ser criados guetos, como já existem em muitos lugares com os
turcos. Quantos dos meus estudantes turcos, mesmo os mais brilhantes, já não foram
vítimas de preconceito? O sobrenome é, em muitos casos, critério de seleção. O
próprio governo já reconheceu que a integração é um fracasso. Mas não são eles
um excelente exército de mão de obra barata? Gente para executar serviços que o
alemão não está disposto a fazer. Gente jovem para garantir a aposentadoria dos
mais velhos. É aquela história: toma chocolate, paga lo que debes. Um dilemme
cornélien. Se ficam, morrem de bombas; se fogem, são massacrados psicologicamente.
De presente de grego, até os gregos estão fartos. Eles conhecem bem a chanceler
alemã. Em suas mãos, tudo vira negócio. Pode ser um Cavalo de Tróia. Atraí-los
para um lugar único e depois encontrar outra solução, que nada tem a ver com
afeto e solidariedade. Será? Tomara que não. Oxalá seja a vitória da
fraternidade entre os povos. Mas não ponho minha mão no fogo. Já chega
queimá-la com as contas de luz, gás e água.
por Flavio Quintale
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