terça-feira, 8 de setembro de 2015

Toma chocolate, paga lo que debes


Vire e mexe vem gente vender coisas para mim. Recentemente uma moça tocou a campainha de casa e, pelo interfone, anunciou que eu havia sido escolhido entre os moradores do bairro para ter um desconto de vinte e cinco por cento nas contas de luz, gás e água.  Estava pensando em tudo naquele instante, menos nas contas de luz, gás e água. Já basta o sofrimento no dia do pagamento. Foi bem no momento em que, saboreando um café forte, lia o jornal The Independent que anunciava, com grande alarde, a proposição de Berlim em acolher cerca de 800 mil refugiados sírios no país. Alguns eufóricos veem a medida como parte de um pagamento humanitário que a Alemanha deve ao mundo. De fato, a medida é louvável. O mundo assiste o desespero de famílias em fuga em busca da sobrevivência. Fotos chocantes inundam nosso cotidiano. Dar-lhes um lar e perspectiva de futuro é um ato de solidariedade invejável. Por outro lado, a Dinamarca faz anúncios na imprensa da região dos conflitos desencorajando os refugiados a tentarem entrar em seu país. Os dinamarqueses leem a história do Patinho Feio de Andersen desde pequenos. Uma parte da população europeia teme o avanço mulçumano ainda maior no continente que pode vir com os refugiados. Foram séculos de luta pela liberdade religiosa. Revoluções e perseguições que custaram muitas vidas. O proselitismo islâmico assusta muitos dos que se opõem a recebê-los. Os partidos xenófobos ganham força. Michel Houellebecq não fez sucesso com seu Soumission por acaso. Esse é o cerne das discussões na Europa, não é somente a questão econômica.

                Mas como ouvi, pelo interfone, a palavra “desconto”, senti um “tim” nos meus ouvidos.  Fiquei interessado em ouvir a boa nova. Fui até a porta atendê-la em ritmo de chachachá. Ela pediu para entrar. Cordialmente, levei-a para se sentar à mesa que temos no jardim. Lá, comemos em família nos dias quentes, nos dias de festa e nos dias de churrasco. Ela se acomodou e começou a explicar que eu receberia um desconto de 25% se trocasse de companhia. Para tanto, eu deveria pagar uma multa para minha atual fornecedora. Ou seja, ela não me disse, mas fazendo os cálculos, no final das contas, a mudança me custaria mais caro. Educadamente, disse que não tinha interesse. Com certa irritação, ela insistiu em me convencer. “O senhor não quer ter desconto?” Entendo. Ela depende de persuadir as pessoas para ganhar uma comissão que, imagino, coitada, deve ser bem irrisória. “Não. Não quero”. Surpresa, ela começava a perder a esperança, até que argumentei que todas essas empresas eram geridas por delinquentes, querendo sempre explorar o consumidor. Vendo meu descrédito no sistema, desolada, ela concordou em ir embora.

Sem deixar de falar em faturas a pagar e voltando a tratar do caso espinhoso, sou obrigado a fazer uma confissão: suspeito de tanto amor. Estrangeiro que viveu tantos anos na Alemanha, como é o meu caso, terá provavelmente a mesma desconfiança que eu. É preciso tomar cuidado. Poderão ser criados guetos, como já existem em muitos lugares com os turcos. Quantos dos meus estudantes turcos, mesmo os mais brilhantes, já não foram vítimas de preconceito? O sobrenome é, em muitos casos, critério de seleção. O próprio governo já reconheceu que a integração é um fracasso. Mas não são eles um excelente exército de mão de obra barata? Gente para executar serviços que o alemão não está disposto a fazer. Gente jovem para garantir a aposentadoria dos mais velhos. É aquela história: toma chocolate, paga lo que debes. Um dilemme cornélien. Se ficam, morrem de bombas; se fogem, são massacrados psicologicamente. De presente de grego, até os gregos estão fartos. Eles conhecem bem a chanceler alemã. Em suas mãos, tudo vira negócio. Pode ser um Cavalo de Tróia. Atraí-los para um lugar único e depois encontrar outra solução, que nada tem a ver com afeto e solidariedade. Será? Tomara que não. Oxalá seja a vitória da fraternidade entre os povos. Mas não ponho minha mão no fogo. Já chega queimá-la com as contas de luz, gás e água.
por Flavio Quintale

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