Oito
dias na vida de moradores de um prédio “numa povoação encostada ao mar a alguns
quilômetros de uma cidade média” dá forma ao romance Debaixo de algum céu de Nuno Camarneiro, vencedor do Prêmio LeYa
2012. A referência ao romance La Vie mode
d’emploi de Georges Perec é evidente e confirma-se logo na citação do
romancista francês que abre o primeiro capítulo: “Rien n’est plus laid (les
escaliers), plus froid, plus hostile, plus mesquin, dans les immeubles d’aujourd’hui”.
Já no preâmbulo, o leitor vai se
acostumando com o trabalho de linguagem presente em inúmeros trechos do livro:
“O mar ouve-se de bravo e, quando não é o mar, é o vento a imitar-lhe a raiva”
ou, mais adiante, “a biblioteca é vasta e antiga, os livros mortos nas estantes
sem esperança de voltarem a viver. São fantasmas com milhares de palavras que
jazem em repouso”. Também La vie mode d’emploi
retrata a vida de moradores de um edifício, mas em Paris. Também tem um
preâmbulo e seu primeiro capítulo fala de escadarias. Essas são apenas algumas
pistas das relações entre as duas obras, certamente um tema para tese acadêmica
em literatura comparada. Nuno reafirma a
tradição literária portuguesa, historicamente em diálogo com a francesa. Mas
não se limita a ela. Há outras referências, entre elas, Dante e Ítalo Calvino.
De
25 de dezembro a primeiro de janeiro, acompanha-se parte da vida e da morte dos
habitantes desse edifício. Nenhuma vida, nenhuma morte, pode ser conhecida em
sua completude “porque é fácil contar o que acontece, mas faltam palavras para
o resto [...] quando alguém conta um dia ou uma vida está a calar quase tudo,
as vidas são imensas e não se podem contar só por palavras”.
Um
emaranhando de vozes compõe a narrativa. Diferentes perspectivas são
contempladas. “O prédio em oito dias dobra muitas partes das vidas dos
inquilinos. São vários os encontros de um morador consigo e com outros”. Nessa
polifonia, aparece o padre Daniel com livros de autores como Kant,
Schopenhauer, Nietzsche e Kafka em sua biblioteca. Leituras pouco ortodoxas,
para esse padre que deixou a casa paroquial para viver no prédio.
David
trabalha em casa. É funcionário de uma empresa virtual, PORVIR, ironicamente futurista.
Na igreja, conhece a devota Teresa: “As primeiras mamas que vi foi atrás da
sacristia, enquanto decorria a missa. Este é meu corpo, tomai e comei, redondas
e tão brancas que eu nem sabia para que serviam, olhei-as e se as toquei
esqueci-me, eram só lindas as duas, com umas pontitas em bico que desafiavam
todas as lógicas que eu conhecia. Este é o meu sangue tomai e bebei”. A
provocação, ao estilo de Saramago, é porque “a ideia de pecado mata mais do que
todas as bombas, o dever e a culpa são morte antes da morte”. Deus, a religião
e a hipocrisia religiosa são temas recorrentes da narrativa: “Filhos-da-puta
dos que seguem o Senhor! Filhos de um cabaz de putas! Cabrões de merda, beatos
de fim-de-semana, fodam-se uns aos outros e deixem Deus para quem precisa!”,
grita um homem descontrolado dentro da igreja. Não é gratuito a história estar
ambientada no período natalino.
Nesse
edifício, microcosmo do mundo, todo leitor se identifica de alguma maneira: “O
Natal de um prédio é cheio de coisas felizes, que algumas se digam para que não
se esqueçam. Tristezas não pagam dívidas e alegrias não contam histórias, mas
umas e outras compõem vidas, de umas e outras se faz o tempo de uma história”.
O tempo em que decorre nossa história, nossa vida, não é mesmo um emaranhado de
alegrias e tristezas?
Ao
apresentar vidas, esse romance de Nuno Camarneiro, é também uma grande
indagação sobre a morte. “A perda dos corpos é por ora compensada com o bulício
de quem ficou, não há o silencio, só ansiedade, perguntas e mágoas”. A leitura
do livro do Apocalipse na missa de
primeiro do ano e a homilia do padre Daniel trazem enorme carga simbólica à
obra. História pessoal e história da humanidade entrelaçam-se. Tombará a noite
no prédio, como tombará a morte na vida de todos nós: “Em breve será noite no
prédio. A história apagar-se-á com o sol, recolhendo-se para dentro de quem a
viveu e de quem soube escutar”. Nuno nos convida a escutá-la. Vivê-la antes que acabe. Deixar “um último
sonho atrasar o dia”.
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