quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Dia, modo de usar


Oito dias na vida de moradores de um prédio “numa povoação encostada ao mar a alguns quilômetros de uma cidade média” dá forma ao romance Debaixo de algum céu de Nuno Camarneiro, vencedor do Prêmio LeYa 2012. A referência ao romance La Vie mode d’emploi de Georges Perec é evidente e confirma-se logo na citação do romancista francês que abre o primeiro capítulo: “Rien n’est plus laid (les escaliers), plus froid, plus hostile, plus mesquin, dans les immeubles d’aujourd’hui”.

                Já no preâmbulo, o leitor vai se acostumando com o trabalho de linguagem presente em inúmeros trechos do livro: “O mar ouve-se de bravo e, quando não é o mar, é o vento a imitar-lhe a raiva” ou, mais adiante, “a biblioteca é vasta e antiga, os livros mortos nas estantes sem esperança de voltarem a viver. São fantasmas com milhares de palavras que jazem em repouso”. Também La vie mode d’emploi retrata a vida de moradores de um edifício, mas em Paris. Também tem um preâmbulo e seu primeiro capítulo fala de escadarias. Essas são apenas algumas pistas das relações entre as duas obras, certamente um tema para tese acadêmica em literatura comparada.  Nuno reafirma a tradição literária portuguesa, historicamente em diálogo com a francesa. Mas não se limita a ela. Há outras referências, entre elas, Dante e Ítalo Calvino.

De 25 de dezembro a primeiro de janeiro, acompanha-se parte da vida e da morte dos habitantes desse edifício. Nenhuma vida, nenhuma morte, pode ser conhecida em sua completude “porque é fácil contar o que acontece, mas faltam palavras para o resto [...] quando alguém conta um dia ou uma vida está a calar quase tudo, as vidas são imensas e não se podem contar só por palavras”.  

Um emaranhando de vozes compõe a narrativa. Diferentes perspectivas são contempladas. “O prédio em oito dias dobra muitas partes das vidas dos inquilinos. São vários os encontros de um morador consigo e com outros”. Nessa polifonia, aparece o padre Daniel com livros de autores como Kant, Schopenhauer, Nietzsche e Kafka em sua biblioteca. Leituras pouco ortodoxas, para esse padre que deixou a casa paroquial para viver no prédio.

David trabalha em casa. É funcionário de uma empresa virtual, PORVIR, ironicamente futurista. Na igreja, conhece a devota Teresa: “As primeiras mamas que vi foi atrás da sacristia, enquanto decorria a missa. Este é meu corpo, tomai e comei, redondas e tão brancas que eu nem sabia para que serviam, olhei-as e se as toquei esqueci-me, eram só lindas as duas, com umas pontitas em bico que desafiavam todas as lógicas que eu conhecia. Este é o meu sangue tomai e bebei”. A provocação, ao estilo de Saramago, é porque “a ideia de pecado mata mais do que todas as bombas, o dever e a culpa são morte antes da morte”. Deus, a religião e a hipocrisia religiosa são temas recorrentes da narrativa: “Filhos-da-puta dos que seguem o Senhor! Filhos de um cabaz de putas! Cabrões de merda, beatos de fim-de-semana, fodam-se uns aos outros e deixem Deus para quem precisa!”, grita um homem descontrolado dentro da igreja. Não é gratuito a história estar ambientada no período natalino.

Nesse edifício, microcosmo do mundo, todo leitor se identifica de alguma maneira: “O Natal de um prédio é cheio de coisas felizes, que algumas se digam para que não se esqueçam. Tristezas não pagam dívidas e alegrias não contam histórias, mas umas e outras compõem vidas, de umas e outras se faz o tempo de uma história”. O tempo em que decorre nossa história, nossa vida, não é mesmo um emaranhado de alegrias e tristezas?

Ao apresentar vidas, esse romance de Nuno Camarneiro, é também uma grande indagação sobre a morte. “A perda dos corpos é por ora compensada com o bulício de quem ficou, não há o silencio, só ansiedade, perguntas e mágoas”. A leitura do livro do Apocalipse na missa de primeiro do ano e a homilia do padre Daniel trazem enorme carga simbólica à obra. História pessoal e história da humanidade entrelaçam-se. Tombará a noite no prédio, como tombará a morte na vida de todos nós: “Em breve será noite no prédio. A história apagar-se-á com o sol, recolhendo-se para dentro de quem a viveu e de quem soube escutar”. Nuno nos convida a escutá-la.  Vivê-la antes que acabe. Deixar “um último sonho atrasar o dia”.

 por Flavio Quintale

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